No dia 29 de Abril, a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS concedeu ao professor Lamartine Pereira da Costa o título de Doutor Honoris Causa.

Ele é graduado em Educação Física e Ciências Navais, tem doutorado em Filosofia e livre docência em Gestão do Esporte. Foi protagonista na Ciência do Treinamento Esportivo nos anos 1960, contribuindo para a conquista da Seleção Brasileira do tricampeonato na Copa do Mundo de Futebol no México em 1970, sendo o responsável pelo planejamento do treinamento em altitude.

Pela parceria de anos, o CREF6/MG foi convidado para a cerimônia de entrega do título ao Prof. Lamartine e foi representado pelo Vice-Presidente do Conselho, Prof. Adailton Eustáquio Magalhães. Aproveitamos o momento, para uma entrevista com o Prof. Lamartine:

– No dia 29 de Abril, o Senhor recebeu da Escola de Ciências da Saúde da PUCRS o título de Doutor Honoris Causa, por ser um dos grandes nomes da Educação Física nacional. Como foi para o senhor receber esse título?

Considerei ser a homenagem mais um reconhecimento da Educação Física como uma área de conhecimento alinhada com as demais no âmbito universitário nacional. No passado recente esse tipo de louvor era raro ocorrer para um profissional de Educação Física. Hoje, além de profissionais com boa penetração social, estamos no mesmo nível dos cientistas e docentes das especializações principais em qualquer universidade; foi sintomático que na PUC RS partiu da área de saúde – medicina, odontologia, nutrição e outras afins – a iniciativa da outorga do Honoris Causa para um profissional de Educação Física.

– É possível atribuir esse reconhecimento a alguma ação específica realizada pelo senhor durante todos esses anos na Educação Física?

Sim. E como tal, a ação específica foi o desenvolvimento da Educação Física, esporte e lazer, como Ciência e não apenas como uma atividade didática, ambientada na Educação no seu sentido amplo, como revelado pela história da nossa profissão em qualquer país. Além disso, sou de uma geração que promoveu as Ciências do Esporte de modo pioneiro nos anos de 1960 em termos de Brasil e desde então cultivo – em semelhança com muitos outros colegas de profissão – a arte de fazer conviver a Educação Física com a Ciência em igual com a Educação, seja na teoria ou na prática. Esta postura foi relatada pela PUC RS na cerimônia do Honoris Causa por uma revisão de minhas seis décadas de profissão e de cinco na formação de graduados, mestres e doutores em várias universidades brasileiras e do exterior.

– O senhor foi protagonista da Ciência do Treinamento Esportivo nos anos 1960, contribuindo para a conquista do tricampeonato da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de Futebol no México em 1970, sendo o responsável pelo planejamento do treinamento em altitude. Contribuiu para a criação dos laboratórios de fisiologia no Brasil na década de 70. Qual é a importância da pesquisa científica de treinamento esportivo diante de um calendário de competições cada vez mais exigente?

De fato, a contribuição para a conquista da vitória na Copa de 1970 foi da Ciência do Esporte então consolidada nos anos de 1960, sobretudo a partir do livro “A Moderna Ciência do Treinamento Desportivo” com data de publicação de 1968 e no qual eu participei como autor e editor. Esta obra coletiva reuniu cinco médicos e quatro diplomados em Educação Física, acontecimento pioneiro naquele estágio cujos impactos ocorrem até hoje. Entre os autores estavam Mauricio Rocha e Luiz dos Santos, médicos com reputação na fisiologia do exercício, Maria Lenk e Mario Cantarino, “professores” de Educação Física renomados à época. Este conjunto de luminares jamais foi igualado no nosso âmbito profissional e certamente tem garantida a interpretação do livro como ponto de partida do conhecimento científico no esporte brasileiro. Registre-se, por necessário, que o Dr. Silvio Raso, trabalhando em Belo Horizonte, despontou no mesmo período na fisiologia do exercício, embora não tivesse participação no livro icônico de 1968; aliás quando eu me deparei com os feitos do Dr. Raso no Treinamento Esportivo incluí um artigo dele ainda em 1969 na revista “Boletim Técnico Informativo” – publicado pela área de Educação Física do MEC para abrigar novos autores – que eu assumi naquele ano como editor. De qualquer modo, o final da década de 1960 foi rico na recriação do esporte brasileiro ao se assumir como cientifico e ao abrir caminhos para os laboratórios de fisiologia surgidos ao longo da década de 1970. Isto permitiu e tem permitido encaminhar melhor os problemas de calendário de competições como diversos outros até então pouco compreendidos.

– Como o pesquisador em Educação Física pode influenciar o desempenho de atletas e suas equipes?

Em princípio por via da Ciência reconhecendo reações bio-fisiológicas e cinesiológicas ao esforço físico como também impactos provenientes de outras formas de intervenção (observadas pela psicologia, pela nutrição, pela cronobiologia etc) em associação com métodos de aplicação de cargas e de rotinas de controle. Essas relações de causas e efeitos devem ser orientadas pela individualidade biológica de cada atleta ou praticante per se em adição a um acompanhamento das reações do grupo em se tratando de equipes. Note-se que há um espaço para a gestão nesse conjunto intervenção-reação-acompanhamento que se mostra válido pelo sentido de liderança exercido sobre os atletas como nos praticantes em geral, daí o realce ao treinador e às demais lideranças envolvidas no Treinamento Esportivo. Em síntese, o pesquisador de atletas e de equipes opera em bases multidisciplinares no ideal de suas intermediações, análises e decisões na busca de melhores resultados. Importa relembrar diante de tal complexo de relações que o livro citado de 1968 apoiou-se numa inequívoca interdisciplinaridade do Treinamento Esportivo. Daí as diferentes especializações dos autores e o sentido coletivo da produção da obra, aliás a primeira com esta peculiaridade na história da Educação Física e Esporte no Brasil.

– Quais eram os desafios da pesquisa científica na área de Educação Física no passado e quais são os de agora?

O equacionamento dos conteúdos da obra de 1968 foi compreendido ao longo dos anos que se sucederam e hoje está plenamente atualizado. E no caso do capítulo sobre meio ambiente e esporte incluído no livro, todavia meu maior interesse científico à época, creio que situa hoje no estado da arte internacional porém distante do interesse dos especialistas brasileiros. Temos portanto um desafio a enfrentar por parte da pesquisa nacional dado a que o livro de 1968 focalizou o clima tropical como ambiente a ser compreendido como limitador da melhoria da capacidade física. Ou seja: um dos desafios do passado continua em pauta no presente. Mas em compensação há no presente uma grande quantidade de pesquisas produzidas no país referidas à Ciência do Treinamento Esportivo, seja com enfoques em particularidades fisiológicas, quer como métodos de aplicação de sobrecargas. Isto sugere que haja quantidade em pesquisas e que naturalmente o desafio se desloque para a qualidade a ser alcançada pelos pesquisadores. Neste propósito eu gostaria de adiantar que há evidências de que a disciplina de Treinamento Esportivo é a de maior aceitação nos cursos de formação profissional em educação Física do país.

– A exigência de Graduação em Educação Física para o exercício da profissão de treinador profissional de futebol será debatida em audiência pública na Comissão de Assuntos Sociais – CAS do Senado. A obrigatoriedade de formação acadêmica consta do Projeto de Lei do Senado 369/2015, em análise na comissão. Como o senhor avalia a exigência de formação acadêmica de treinadores de futebol?

Sendo hoje a Educação Física e o esporte definidos como meios de intervenção de natureza científica em escala mundial é justo que seus profissionais sejam no mínimo formados em nível de graduação em faculdades e universidades. Em última análise, qualquer relaxamento nessa obrigatoriedade é um ato de irresponsabilidade com relação à saúde pública. E no caso do treinador profissional de futebol a anulação da obrigatoriedade além da insegurança social há o significado de desrespeito aos atletas pois na atualidade a condição física não pode se sujeitar a improvisações e ao empirismo.

– A campanha Esporte para Todos, originalmente proposta pela União Europeia e pela Unesco, teve no Brasil a liderança do senhor. Como funcionou o programa e quais foram os resultados para a população e para sua carreira como Profissional de Educação Física?

O Esporte para Todos despontou no período 1979 a 2002 no Brasil com resultados notáveis em termos de conscientização dos valores da atividades físicas junto à população do país. O então chamado EPT foi na sua essência uma verdadeira fábrica de inovações e que revelou caminhos desconhecidos ou não plenamente adotados para contato direto com pessoas e com grupos comunitários. Em resumo, o EPT foi uma via alternativa para a Educação Física, esporte e lazer no país com criação e gestão locais. Houve também a sustentação das atividades por cerca de nove mil voluntários nas duas décadas em que se promoveram atividades físicas e recreativas. Essas circunstâncias deram surgimento a novos papeis de intervenção e liderança aos profissionais de Educação Física, antes mais circunscritos às escolas, aos clubes e às academias; isto se mostrou positivo para a população como outrossim criou o desafio de uma Educação Física transdisciplinar, algo até hoje em experimentação. Esse desdobramento de funções da profissão pelo menos em termos de Sistema Único de Saúde da atualidade foi favorável pois o profissional de Educação Física tem enfrentado em anos recentes o desafio de participação no SUS em equipes multidisplinares. Em conclusão eu ousaria dizer que o EPT consistiu para os profissionais de Educação Física numa espécie de ensaio para suas atividades futuras.

– É comprovado que ações preventivas de saúde são menos custosas que ações curativas. Diante disso, quais as responsabilidades do Profissional de Educação Física com a saúde da população?

A julgar por consistentes exemplos do exterior, a profissão de Educação Física tem se revelado crescentemente como pertencente à área de saúde. No Brasil já é visível esta tendência desde a época do EPT mas não perdendo o sentido multidisciplinar como se confirma hoje no funcionamento do SUS. Resta-nos então promover as devidas responsabilidades profissionais enfatizando significados não tradicionais das intervenções, proposições éticas – ou bio-éticas – adequadas ao ambiente multidisciplinar e sobretudo conhecimentos científicos mais voltados para a vida saudável da clientela.

– A Relação Anual de Informações Sociais – Rais do Ministério do Trabalho registrou que Preparador Físico e Professor de Educação Física no Ensino Superior estão entre as 20 Profissões que mais cresceram no Brasil nos últimos 10 anos, entre 2007 e 2017. Já o Censo do Ensino Superior revelou que o Curso de Educação Física é o oitavo em número de matrículas e a Licenciatura na área é a segunda mais procurada. Quais são suas expectativas e anseios para o futuro da Profissão?

Também seguindo acontecimentos e projeções de países avançados torna-se previsível que a Educação Física é uma profissão tanto do presente como do futuro. Isto porque se trata de uma atividade que convive bem com as características identificadas na chamada Era Digital além de se ajustar adequadamente ao domínio da tecnologia na vida prática. Já se fala inclusive numa “Educação Física 4.0” que se apresenta por sinais na vida cotidiana tanto no Brasil como no exterior. As minhas expectativas atuais portanto incidem numa plena e bem ajustada convivência com as tecnologias no exercício da nossa profissão. Assim disposto, participei recentemente num livro coletivo como editor – função dividida com Prof. Dra Ana Miragaya em que se gerenciaram 13 autores – quando se discutiu e a versão 4.0 das nossas intervenções com exemplos de nosso âmbito profissional, observados em situações típicas do país. Curiosamente repetimos o feito do livro de 1968 que incluiu um capítulo de meios tecnológicos como pretenso desdobramento da Ciência do Esporte então em sua fase embrionária. Trata-se enfim de uma expectativa antiga de meio século que finalmente está alcançando a devida credibilidade.